Monday, November 23, 2009

carta

Convencionado está que a carta seja um pedaço de papel no qual se podem inscrever letras que, formando palavras (numa determinada língua), constituam uma mensagem que se pretende enviar de uma entidade a outra, materializadas num remetente e num destinatário. A carta é, portanto, um meio através do qual um interlocutor se pronuncia, na sua própria ausência, a um determinado alguém. Visto a distância latente neste processo de comunicação, inevitável, percebe-se que a relação que entre os dois se estabelece é indirecta. De qualquer modo, todo o tipo de diálogo é uma comunicação indirecta, uma vez que a linguagem representa a materialização das ideias, primariamente formadas no pensamento. A comunicação é, portanto, um meio de exteriorização, e não é possível que o seja de outra maneira. A distância nunca é verdadeiramente anulada. Idealmente, tal só poderia concretizar-se através da telepatia, onde um sujeito poderia transmitir a outro aquilo que realmente pensava, mas tal não parece verificar-se. Voltando à questão da carta, e de uma outra perspectiva, menos formal, pode entender-se que o diálogo por ela estabelecido é ilusório, visto que as duas partes estão fisicamente ausentes. Para além da necessidade da exteriorização e consequente materialização dos pensamentos, o indivíduo ainda perde a imediaticidade que o processo anteriormente indicado acarreta e não pode agir sobre as suas ideias. Segundo Kafka, o que é enviado pela carta é então assombrado por fantasmas que se apoderam das acções contidas nas palavras, praticando-as, vivendo delas. Um beijo escrito é bebido pelos fantasmas, como se tal se tratasse de um néctar de juventude, que continuamente os mantém vivos. Logo, um beijo escrito pouco mais é que isso mesmo, visto que não se materializa num beijo. Apesar de tudo, um beijo escrito pode resultar num aquecer da alma, num toque de carinho. Isto se a mensagem for entregue à pessoa certa, se chegar num momento oportuno, se causar “no destinatário” a sensação que o remetente pretende. Voltando à metáfora dos fantasmas, isto acontecerá se, por caso de uma excepção à regra, a carta conseguir resistir, pelo menos um pouco mais, às mãos de tais sedentas espécies. Neste sentido, ou nestas excepções, as cartas são verdadeiras formas de expressão da alma.
A propósito de cartas, é curiosa a forma como por aí se pede que “não se bata no mensageiro” – visto ser um “simples” transportador, que nada terá a ver com a mensagem a ser enviada. No entanto, e de salientar, é fulcral o papel que tem o mensageiro que, no cumprimento da sua função, permite a conclusão do sentido da carta, ao fazê-la chegar à pessoa destinada. Quando uma carta se perde, ou chega às “mãos erradas”, não deixa de ser, formalmente, uma carta. Mas o sentido verdadeiro da carta perde-se, voltando a ser apenas a matéria que a formou: um pedaço de papel, as letras inscritas, o envelope. Há, claramente, diferença entre uma carta que chega ao destinatário e outra que não o faz, como existe diferença entre o estar e o ser. Uma mensagem que chega verdadeiramente ao destino transporta uma mensagem que existe, existindo para alguém. Na que fica pelo caminho está uma mensagem que nunca o chega a ser, na sua plenitude, visto que não cumpre a sua função. A carta que não chega ao seu destino é uma falsa carta, pois que só poderá ter no receptor um de dois efeitos: ou servirá para motivos terceiros, alheios à carta em si (como, por exemplo, para fazer chantagem), ou provocar-lhe-á, no seu expoente máximo, o pleno sentimento de indiferença.
No conto “A Carta Roubada”, de Edgar Allan Poe, são duas as cartas que captam particularmente a atenção do leitor; uma que no início da peripécia é roubada (à pessoa a quem fora enviada, por parte de Ministro D.) e uma outra que Dupin escreve para substituir – aparentemente – a primeira. A carta que é roubada, é-lo por motivos de um terceiro que, ao tê-la em sua posse, ganha algum poder sobre um outro personagem. O conto gira pois em torno das buscas que são feitas no sentido de a encontrar e devolver ao seu verdadeiro destinatário. Cedo se percebe que a carta fora perspicazmente escondida (visto que todas as buscas efectuadas na casa de Ministro D., por parte do perfeito, são infrutíferas). Dupin, de uma forma imprevisível. por aqui infere – e por alguns outros detalhes que lhe são fornecidos pelo perfeito – que o único sítio onde a carta poderá estar será mesmo nos aposentos do - já certo – ladrão, mas, se não escondida, à vista de todos. Como tal, dirige-se ao local em questão e, confirmada a sua suposição, troca a carta roubada/procurada por uma outra. A forma desta segunda carta é semelhante à primeira – para que o ladrão não se aperceba prontamente do sucedido. Mas não só; também o é para que o Ministro D. só a leia num determinado momento: quando desconfiar que a carta que tem na sua posse não é já a carta que tinha. E quando, por via da dúvida, o Ministro D. ler a carta que Dupin lhe deixou, lerá uma mensagem que, inscrita num pedaço de papel, através de letras que, lá inscritas, formam palavras, estará destinada a ele próprio. O remetente, conhecê-lo-á pela caligrafia. No caso, será uma verdadeira carta.
Ainda que minada pelos fantasmas que sempre se apossam das cartas, pois que quem as escreve está ausente no momento da sua leitura por parte do destinatário, esta carta consegue, de certa forma, ser a excepção à regra. Isto porque é bem provável esta carta, apesar da sua limitação física, mexa verdadeiramente com os sentimentos da pessoa a quem se destina, o Ministro D. Citando Kafka, “No entanto, se é uma ilusão, é de qualquer modo perfeita”. Como se, de alguma forma, a carta substituísse perfeitamente a presença de Dupin e a ameaça que essa presença significa.

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